Sobre o autor
Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte. Graduado em sociologia pela Johns Hopkins University, mestre em artes visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e PhD em história da arte pelo Courtauld Institute of Art – University of London. Atualmente, é professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e atua também como curador. É autor de Uma Introdução à história do design dentre outras publicações[1]. Na Cosac Naify organizou O mundo codificado de Vilém Flusser (2007) e O design brasileiro antes do design (2005).
O autor, que não se considera um designer, já é um dos grandes nomes na construção de uma bibliografia para o design brasileiro. Por sua convivência a mais de 15 anos neste meio, e através de um olhar de quem está fora, o autor declara abertamente[2] que com esta publicação procura retribuir com ideias, argumentos, apontamento de falhas e questionamentos, formas de melhorar o design atual.
Principais pontos abordados na publicação
- Crítica ao funcionalismo
- Complexidade da compreensão da forma
- Artefatos e o processo de significação do mesmo
- Memória e identidade atrelada a experiência do usuário
- Funções e valores influenciando o consumo
- Meio ambiente e consumo como pontos de conflito
- As redes imateriais e o “mundo virtual”
- Falhas no ensino do design
- Amplitude das áreas do design e o preparo dos estudantes para o mercado
- Importância de erudição para o designer
Resenha
O livro inicia-se com um apelo à litura. Rafael Cardoso frisa que no mundo de hoje, onde muita informação nos cerca por todos os lados e em várias mídias, o hábito de uma leitura mais profunda cai em desuso. Sendo assim, ele elogia diretamente o leitor e defende que a leitura é o único caminho de combate a mediocridade e ignorância, mantendo viva e propagando a nossa cultura.
‘Design para um Mundo Complexo’ é dividido em 5 capítulos: Introdução, Capitulo 1, 2,3 e Conclusão. Na introdução, Cardoso contextualiza o surgimento do design no período industrial e levanta questões sobre o pensamento funcionalista da década de 30. Tal pensamento persistiu no Brasil até a década de 80, com exceção de alguns designers da contracultura que defendiam as visões de Victor Papanek de uma produção flexível e voltada a atender as demandas por diferenciação. Claramente, Cardoso mostra-se um grande admirador de Papanek, atribuindo seu livro como uma continuação do pensamento do mesmo, adaptado ao mundo em que vivemos hoje, com influencias do meio digital e sendo essa a ‘era da informação’.
Aspectos ecológicos e de impacto ambiental, problemas sociais, produção e consumo, são temas recorrentes tanto no livro do Papanek, quanto no do Cardoso. Este, frisa que tais questões continuam sendo problemas dos dias de hoje e que a globalização trás a tona a complexidade para o mundo dos designers no que se refere à unificação de sistemas de fabricação, distribuição e consumo. Seu livro levanta questões de adequação do design como instrumento para pôr ordem no mundo industrial.
Voltando a ‘forma e a função’, Cardoso critica esta linha de pensamento citando Sócrates: “Pode algo ser belo para qualquer outro propósito a não ser aquele para o qual é belo que seja usado?” [3] (SÓCRATES, 400 A.C. ) . Ele questiona que Sócrates não quis dizer que uma coisa era bela devido ao seu propósito e sim ao seu uso (página 26). Fazendo com que o foco que fundamentava o funcionalismo passe dos objetos para as pessoas. Nesta parte da introdução o autor começa a exemplificar o processo de valoração e significação das formas, mais precisamente dos artefatos (bens produzidos pelo homem) e colocando em xeque os funcionalistas, pois outros fatores subjetivos também influenciam no uso e significação do mesmo, dependendo do indivíduo. Até mesmo que o conceito de ‘forma’ era ambíguo e que para compreendê-lo era preciso analisar alguns aspectos como: aparência, configuração e estrutura (página 33).
Entra nesse momento a ideia de que os artefatos não possuem significado fixo pois, ao longo do tempo, o mesmo pode passar por vários usos e siginficações, dependendo das experiências das pessoas com o mesmo. Cardoso cita: “…o olhar é uma construção social e cultural, circunscrito pela especificidade histórica do seu contexto” [4] (BAXANDALL, 1991), quando exemplifica os restauradores da pintura da Santa Ceia que foram criticados por suas interpretações do que deveria ser a pintura original.
O autor encerra a introdução expondo as novas mídias, como celulares e internet como fatores agregadores de complexidade no mundo que vivemos hoje. Fazendo com que o imaterial e o material se confundam num ambiente virtual e ágil. Onde a troca de informação influencia o cenário atual e a relação com o design.
No primeiro capítulo do livro ‘Contexto, memória, identidade: o objeto situado no tempo-espaço’ Cardoso inicia diferenciando o que é objeto e artefato. “Artefato é um objeto feito pela incidência da ação humana sobre a matéria-prima: em outras palavras, por meio da fabricação” (página 47). E lança a pergunta “Será que existem mesmo artefatos imóveis?”. Para elucidar este tema o autor trás o exemplo dos Arcos da Lapa, e argumenta contra sua imobilidade no tempo, desde quando foi construído na época colonial e possuía a função de aqueduto, até os dias de hoje, como símbolo turístico da Lapa e por onde passa o bondinho. Mesmo sendo o um ‘artefato imóvel’ seu significado e percepção mudaram ao londo dos anos, pois variam conforme as experiências das pessoas com o mesmo. Por exemplo, no tempo colonial sua estrutura era vista como enorme e se destacava na paisagem. Hoje sua percepção foi ‘apequenada’ diante dos prédios e avenidas ao seu redor. Este exemplo do Cardoso foi muito feliz, pois ele discorre ao longo de várias páginas e prova ao leitor como o significado desses artefatos mudam com o tempo, contexto histórico e cultural. Discorrendo assim sobre os 6 fatores que condicionam o significado: uso, entorno, duração, ponto de vista, discurso e experiência.
Passando agora para uma esfera mais centrada no design e na criação de identidades visuais, Cardoso inicia a discussão sobre como a memória influencia na tão aclamada ‘experiência do usuário’ pois “a maioria das experiências que temos ao nosso dispor não é acessada a qualquer momento pelos sentidos, mas por meio da memória” (página 73). Afirma que a memória é mais reconstruída do que acessada, pois nossa capacidade cerebral é falha “a memória é um processo de reconstituição do passado pelo confronto com o presente e pela comparação com outras experiências paralelas” (página 75).
Ao reconstruir uma memória as pessoas recobram experiências, valores, medos… isso reflete em como elas se comportam e interagem com os artefatos. Influencia na experiência atual. É por esse motivo que grandes marcas, mesmo quando atualizam suas identidades, procuram preservar seus elementos primordiais a sua identificação, mantendo sua familiaridade e valores com o usuário.
No segundo capítulo ‘A vida e a fala das formas: significação como processo dinâmico’ o autor distingue alguns significados que são por muitos confundidos, como é o caso de: função, funcionamento, funcional, operacional. Para esclarecer bem essas diferenças ele usa o exemplo do relógio de pulso. Seria esse um bem em que “em termos de sua funcionalidade e operacionalidade, sua principal função é cronometrar a passagem do tempo” (página 102) de preferência com conforto segurança e durabilidade. Colocando 3 famosas marcas em questão: Cassio, Rolex e Swatch, suas funcionalidades são as mesmas, porém ao entrar os valores e significados de cada uma, temos a marca Rolex agregando outros significados, como: luxo, poder, exclusividade, prestígio… seria esse o ‘valor agregado’ do produto.
Novamente, nesta parte do livro, são levantadas críticas ao funcionalismo, pois os mesmos acreditavam que com o tempo os artefatos evoluiriam para uma forma única ideal. Porém o que se vê, é que com os avanços tecnológicos, mesmo os produtos mais simples (como as Havaianas), a diversidade e a customização são cruciais para o sucesso do mesmo, pois é o que os consumidores atuais demandam do mercado. Entram nessa questão valores subjetivos como satisfação, estilo, uso, novamente as lembranças… “todo artefato material possui também uma dimensão imaterial, de informação” (página 111). Cardoso quis dizer com isso que a valoração subjetiva dos artefatos varia de pessoa a pessoa e a busca na identificação e consumo do mesmo reflete uma condição do design atual. Não é a toa que a mídia trabalha incansavelmente para mudar padrões estéticos de moda e decoração, para fazer com que os consumidores almejem e consumam novos bens.
Falando em consumo, o livro aborda rapidamente a questão do descarte, ressignficação e pós-uso. Cardoso, assim como Papanek, preocupa-se e tenta abrir os olhos do leitor a importância de pensar nas consequencias da produção em massa. Pensar em soluções que minimizem o descarte de matérias no meio ambiente, sejam reciclando, re-utilizando, otimizando o processo produtivo, e ainda planejando o seu pós-uso. Fazer com que não só o design, mas a indústria pense no processo produtivo, não linearmente, mas ciclicamente. Onde o final deste produto não acabe no descarte. Defende o princípio da manutenção, que a produção seja otimizada para objetos com módulos trocáveis para que tenham uma maior durabilidade (a exemplo de equipamentos eletrônicos como computadores).
No terceiro capítulo ‘Caiu na rede, é píxel – desafios do admirável mundo virtual’ ao tentar explicar a complexidade da rede virtual de computadores, a web, Cardoso exemplifica com um dialogo imaginário com um viajante no tempo para demonstrar o quão abrangente é a quantidade de informações a que temos acesso instantaneamente hoje em dia. E o que nós fazemos com ela? como lhe damos com isso? Por trás das redes existem pessoas, governos, sistemas… muitas informações que devemos usufruir ao nosso favor.
Descrevendo as redes, Cardoso utiliza o exemplo do metrô de Londres e de estruturas de uma grande Cidade. São obras do homem e que evoluíram com o tempo, com a necessidade e com os problemas advindos do comportamento humano. Entrando no mundo industrial, o autor também o toma como exemplo de uma rede, uma cadeia produtiva, como o ciclo do café. Onde todas as atividades estão conectadas desde o plantio, cultivo, torra, transporte, venda, compra, consumo, descarte, etc.
Voltando ao meio digital e imaterial da internet, o autor procura apontar semelhanças entre a mídia impressa de um jornal e um site de notícias, onde se pode perceber nuances em sua estrutura. Sendo a maior diferença entre uma e outra a forma de interagir e navegar em seu conteúdo. Não sei se pela época em que foi escrito o livro, mas essas semelhanças hoje passariam mais distantes numa mídia como os celulares por exemplo.
Quanto a navegação, ele faz um paralelo com a navegação marítima e a navegação na web. Onde no primeiro se necessita sempre de um referencial para não se perder, no segundo as possibilidades são inúmeras podendo inclusive modificar o meio e seus significados e interagir com o conteúdo.
Na conclusão do livro o autor expõe as falhas no ensino de design no Brasil. Fala que desde a década de 60 o Brasil copia sem muitas adaptações o ensino e diretrizes de escolas do design internacional. Talvez pela falta de experiência daqueles primeiros professores que se aventuraram no ensino do design na época, que aceitavam tudo como verdades absolutas e questionavam pouco. Hoje Cardoso fortemente recomenda o pensamento crítico, a manutenção da curiosidade e a transformação do aprendizado num processo contínuo.
Conclusão
A leitura do livro por vezes passeia pela informalidade e provocação, o que faz com que flua rápida e prazerosamente, como numa conversa de mesa redonda. O livro trás muito mais do que conceitos e percepções do comportamento e cognição humana, ele acende uma luz aos questionamentos acerca a complexidade de nossa profissão. Ilustrando com exemplos concretos e familiares ao leitor, o autor consegue elucidar bem os pontos abordados, fazer rupturas em padrões de pensamento e rever conceitos analisando outras perspectivas.
Uma leitura rica e interessante que tenta mobilizar os designers com uma visão de quem está de fora e vê as problemáticas do dia a dia projetual, da concepção e da experiência dos usuário, propondo uma melhor análise e imersão nos contextos destes sistemas que influenciam todo seu redor.
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Referência(s): Design para um Mundo Complexo, Rafael Cardoso, São Paulo: Cosac Naify, 2012, (264 páginas)
Cadeira: Fundamentos em Design, Tecnologia e Cultura – MD 926
Profª. Drª Kátia Araújo
Aluna: Virgínia Carrazzone Cavalcanti
Data: 10/12/2015
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